Frente à tela fazia tempo que Mafalda
olhava mas não via e nem escutava a novela. Engraçado! A partir dos sessenta e
cinco anos este alheamento havia começado. A filha que passava de lá pra cá em
seus afazeres comentava com as amigas: Mamãe não perde um capítulo. Fica
vidrada. Prestasse ela mais atenção
à expressão de Mafalda, perceberia que aquele olhar vago e distante não era
destinado aos personagens que desfilavam na tela. Mafalda estava era se dando
conta da entrada na terceira idade! E como!
Em sua vida até então nada de terrível
havia ocorrido. Fora tranqüila entremeada de momentos bons e ruins como a de
todo mundo. Alguns foram difíceis e tristes, é verdade, como a morte do marido
havia alguns anos. Mas isto teria mesmo
que acontecer: era ele quase vinte anos mais velho. Os filhos – três - haviam
nascido, crescido e tomado o destino lá deles sem maiores problemas. Uma pensão
razoável garantia-lhe o morar com a filha sem a sensação de dependência. Ao
contrário, até ajudava, providenciando coisas supérfluas que o genro não
poderia prover. Então – pensava Mafalda – porque a sensação de que alguma coisa
faltara? Por que esta sensação estava ali, presente. Incomodando. E o que é
pior, cada vez mais forte.
Vai daí que um dia a neta interrompe seus
devaneios com uma pergunta aparentemente sem importância: Vó, e se você
ganhasse na sena? Mafalda sorri,
achando graça: impossível, meu bem. Eu não jogo! A neta insistiu: mas, e se?! Mafalda não respondeu, mas, a partir deste
dia, não conseguiu mais se livrar da introspecção do que lhe faltava. Aquilo
ficou martelando e seus ouvidos: “e se... e se...” Censurou-se: e se o quê? Jogar na Sena? Que bobagem! A probabilidade é mínima. Esta
constatação deveria ter sossegado seu pensamento. Mas não! O “e se” continuava
insistente. Lembrou-se sorrindo e até um pouco envergonhada: e se eu houvesse
me casado com o Augusto? Uma pontinha de
emoção começou a fazer seu coração bater mais forte. Censurou-se de novo: que coisa
ridícula na minha idade! Ele já deve até ter morrido. Suspira: era lindo! E se
não houvessem mudado para o Rio de Janeiro... quem sabe?
A partir daí uma torrente de “e se”
começou a jorrar de seus pensamentos. E se não houvesse aceitado a imposição do
marido para que parasse de trabalhar? E se tivesse ido à Europa com o dinheiro
que teria ganhado? E se tivesse conhecido Veneza, seu sonho? E se tivesse dito
à desagradável Tia Eulália tudo que ela merecia ouvir? Uma tristeza começou a
invadir seu mundinho: os “e se” ficaram todos num passado distante. Impossível
de realizá-los. Até a peste da Tia Eulália já se foi!
De repente como um raio um pensamento
perigoso. Muito perigoso!. Os “e se“ não precisam se tornar passado!! E se ela
comprasse aquele vestido que adorou, mas achou com um ar muito jovem?
Levantou-se de um salto. O shopping ficava aberto até 10 horas e era é logo
ali. Sob olhar estarrecido da filha anunciou: vou sair. Já volto! E foi assim que tudo começou. O vestido novo
funcionou como uma armadura guerreira que lhe permitiu partir, lança em riste,
para a aventura de uma terceira idade assumida e divertida em que os “e se”
podem acontecer no presente.
O primeiro dos desatinos (segundo os
filhos) foi: e se eu fosse dançar na Estudantina? A ida ao dancing
sozinha era uma ação inimaginável em sua pacata vida. Mas foi. Não só foi como
dançou, noite adentro, com um daqueles fabulosos senhores que por lá exibiam
suas qualidades coreográficas. E se eu cortasse meus cabelos bem curto,
deixando que os cachos que sempre procurei esconder se liberem? E assim foi
feito e no salão o “e se” funcionou a mil: maquilagem, depilação, massagem
linfática tudo o que tinha direito. Quase não foi reconhecida ao entrar em
casa.
Os filhos ficaram em pânico. Uma noite se
reuniram em casa do mais velho deles aventando as possibilidades as mais
terríveis. O que mais ela poderia aprontar? A filha desolada informa: ela comprou um maiô! Deu pra ir a
praia com aquele velho do quinto andar! Os outros gritam apavorados: vai
dizer que ela está namorando?! A moça suspira: felizmente, não. Ela
disse que ele é um chato... mas carrega a barraca! Ao voltar para casa a filha quase desmaia ao
vê-la participando da mesa de pôquer que
o marido organiza as quartas feiras com os amigos. Ela chama o marido aparte e
furiosa cobra: “ta maluco?! Você está dando força para esta loucura de mamãe
querer parecer jovem?!” O genro
sorri: “ela não está parecendo mais jovem e nem quer isto. Ela está, minha
querida, muito feliz!”
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