terça-feira, fevereiro 25, 2014

O BROCHE DE DONA OTÍLIA

D. Otília vive seus últimos momentos. Ao redor da cama todos os membros da família Mendonça aguardam ansiosos. O testamento da velha prima, podre de rica, nunca havia sido revelado guardado que estava a sete chaves numa firma de advogados. Durante anos esperavam por aquele momento. Afinal eram os únicos parentes. Nos últimos dez anos, quando a velha não mais se levantava, revezavam-se em visitas relâmpago, cada um procurando suplantar o outro com frases feitas e declarações fingidas. A velha a tudo escutava muda, mas sorrindo. Um sorriso muito estranho, mas não de menos, um sorriso. E este acalmava as dúvidas: era evidente que havia entendido.  Vai ver não falava, impedida pela emoção. Ou, de tão velha, esquecera-se das palavras. O fato é que não falava.

O médico se aproxima da cama e se inclina sobre a velha senhora. Levanta-se encarando a família e murmura: acabou. Os Mendonça mal disfarçam a alegria. Uma única pessoa se entristece: Margarida, a acompanhante que a tudo assistia a um canto do quarto. Afeiçoara-se à velha. Foram anos de convívio e de conversas. Conversas, sim. Com Margarida o sorriso se traduzia em palavras. E foi assim que ao longo de intermináveis noites e dias trocaram histórias de vida. Margarida encontrou na velha uma ouvinte como nunca havia tido.


Criada num orfanato havia aprendido a calar-se sobre si mesma. Lá não havia o individual. Apenas o coletivo importava. Maravilhou-se quando logo nos primeiros dias de convívio D. Otília ordenou, quase severa: fale-me de você. E ela percebeu, pela primeira vez na vida, que existia como pessoa. E deitou falação. Falava de tudo, do que sentia, do que pensava e, sobretudo, falava de Jonas! Jonas, o bombeiro por quem havia se apaixonado. E foi correspondida! Tanto que se casaram. Nos últimos anos, o assunto ainda era Jonas.  D. Otília se interessava e curiosa perguntava: nada lhes falta agora, Margarida? E a moça: nada, D. Otilia, nada mesmo.  D. Otília duvidava: alguma coisa vocês hão de querer!  A moça ria gostoso: deixa pra lá, D. Otília.

Margarida adorava as histórias de que a senhora lhe contava. Lembranças da infância, juventude e, sobretudo, do casamento muito feliz com o Comendador que já se fora há anos. Depois de sua morte Margarida havia sido sua única amiga. Faziam-lhe bem as conversas com a moça. Como Margarida, não havia tido filhos e, também como ela, havia tido uma infância solitária. Família apenas aqueles primos distantes que a tinham como louca. E ela ria, ria muito, imaginando o que dela pensavam. E perguntava à Margarida: nunca ouviu qualquer comentário deles sobre o broche? A moça bem que tinha escutado, mas se absteve de falar. Não era uma leva e traz! Mas mesmo ela achava esquisito aquele broche de chumbo sempre, pregado à camisola de linho finíssimo. Por várias vezes quis perguntar a D. Otília o porquê daquilo, mas continha-se. Afinal era a única manifestação de insanidade da velha e não fazia mal a ninguém. O broche, uma bijuteria muito antiga, representava um enorme macaco com olhos de pedras falsas vermelhas. Um horror.

E eis que chega o dia da abertura do testamento. Estarrecidos os Mendonça escutam: todos os meus bens para o asilo em que Margarida foi criada. Todo o valor deve ser usado para que as crianças tenham todas as possibilidades, sobretudo a de serem escutadas. Uma única exceção: o meu broche deverá ser dado à Margarida e a Jonas. E este deverá providenciar para que seja derretido. Foi um Deus Nos Acuda! Os primos tentam, sem sucesso, embargar o testamento. Impossível. Os advogados, ainda que o achassem estranho, atestam a sanidade da senhora na época em que havia sido redigido.


Margarida exulta com a doação ao orfanato. E confidencia a Jonas: quando ela me perguntava o que eu queria eu tinha vontade de dizer que era isto. Mas nunca tive coragem! Envergonhada confessa: eu também queria dizer que a gente queria comprar uma casa. Mas ela podia pensar que eu estava pedindo, não é? Jonas riu: ela bem que podia ter adivinhado isto também! Mas vamos lá derreter o macaco. Os dois, solenes como numa cerimônia fúnebre, assistem o desfazer do broche numa panela sobre o fogão. Espantados escutam o riso maroto e alegre de D. Otília, no momento em que da cabeça do macaco surge um enorme diamante!  Outro logo depois é revelado na barriga. Dentro da panela, reluzindo, estava a nova casa.  

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