D. Otília vive
seus últimos momentos. Ao redor da cama todos os membros da família Mendonça
aguardam ansiosos. O testamento da velha prima, podre de rica, nunca havia sido
revelado guardado que estava a sete chaves numa firma de advogados. Durante
anos esperavam por aquele momento. Afinal eram os únicos parentes. Nos últimos
dez anos, quando a velha não mais se levantava, revezavam-se em visitas
relâmpago, cada um procurando suplantar o outro com frases feitas e declarações
fingidas. A velha a tudo escutava muda, mas sorrindo. Um sorriso muito estranho,
mas não de menos, um sorriso. E este acalmava as dúvidas: era evidente que havia
entendido. Vai ver não falava, impedida
pela emoção. Ou, de tão velha, esquecera-se das palavras. O fato é que não
falava.
O médico se
aproxima da cama e se inclina sobre a velha senhora. Levanta-se encarando a
família e murmura: acabou. Os
Mendonça mal disfarçam a alegria. Uma única pessoa se entristece: Margarida, a
acompanhante que a tudo assistia a um canto do quarto. Afeiçoara-se à velha.
Foram anos de convívio e de conversas. Conversas, sim. Com Margarida o sorriso
se traduzia em palavras. E foi assim que ao longo de intermináveis noites e
dias trocaram histórias de vida. Margarida encontrou na velha uma ouvinte como
nunca havia tido.
Criada num
orfanato havia aprendido a calar-se sobre si mesma. Lá não havia o individual.
Apenas o coletivo importava. Maravilhou-se quando logo nos primeiros dias de
convívio D. Otília ordenou, quase severa: fale-me
de você. E ela percebeu, pela primeira vez na vida, que existia como
pessoa. E deitou falação. Falava de tudo, do que sentia, do que pensava e,
sobretudo, falava de Jonas! Jonas, o bombeiro por quem havia se apaixonado. E
foi correspondida! Tanto que se casaram. Nos últimos anos, o assunto ainda era
Jonas. D. Otília se interessava e
curiosa perguntava: nada lhes falta
agora, Margarida? E a moça: nada, D.
Otilia, nada mesmo. D. Otília duvidava:
alguma coisa vocês hão de querer! A moça ria gostoso: deixa pra lá, D. Otília.
Margarida
adorava as histórias de que a senhora lhe contava. Lembranças da infância,
juventude e, sobretudo, do casamento muito feliz com o Comendador que já se
fora há anos. Depois de sua morte Margarida havia sido sua única amiga.
Faziam-lhe bem as conversas com a moça. Como Margarida, não havia tido filhos
e, também como ela, havia tido uma infância solitária. Família apenas aqueles
primos distantes que a tinham como louca. E ela ria, ria muito, imaginando o que
dela pensavam. E perguntava à Margarida: nunca
ouviu qualquer comentário deles sobre o broche? A moça bem que tinha
escutado, mas se absteve de falar. Não era uma leva e traz! Mas mesmo ela achava esquisito aquele broche de chumbo sempre, pregado à
camisola de linho finíssimo. Por várias vezes quis perguntar a D. Otília o
porquê daquilo, mas continha-se. Afinal era a única manifestação de insanidade
da velha e não fazia mal a ninguém. O broche, uma bijuteria muito antiga,
representava um enorme macaco com olhos de pedras falsas vermelhas. Um horror.
E eis que
chega o dia da abertura do testamento. Estarrecidos os Mendonça escutam: todos os meus bens para o asilo em que
Margarida foi criada. Todo o valor deve ser usado para que as crianças tenham
todas as possibilidades, sobretudo a de serem escutadas. Uma única exceção: o
meu broche deverá ser dado à Margarida e a Jonas. E este deverá providenciar
para que seja derretido. Foi um Deus Nos Acuda! Os primos tentam, sem
sucesso, embargar o testamento. Impossível. Os advogados, ainda que o achassem
estranho, atestam a sanidade da senhora na época em que havia sido redigido.
Margarida
exulta com a doação ao orfanato. E confidencia a Jonas: quando ela me perguntava o que eu queria eu tinha vontade de dizer que
era isto. Mas nunca tive coragem! Envergonhada confessa: eu também queria dizer que a gente queria
comprar uma casa. Mas ela podia pensar que eu estava pedindo, não é? Jonas riu: ela bem que podia ter adivinhado
isto também! Mas vamos lá derreter o macaco. Os dois, solenes como numa
cerimônia fúnebre, assistem o desfazer do broche numa panela sobre o fogão. Espantados
escutam o riso maroto e alegre de D. Otília, no momento em que da cabeça do
macaco surge um enorme diamante! Outro
logo depois é revelado na barriga. Dentro da panela, reluzindo, estava a nova
casa.
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