domingo, fevereiro 23, 2014

O PODER DO SONHO

      O que havia de mais extraordinário naquela pequena cidade eram as donas do único salão de beleza. Eram quatro e desde crianças, amigas de fé. Rosa, negra lustrosa de olhos grandes; Misuko, nisei doce e calma; Fátima, bela morena filha de libaneses e Jandira, cabelos negros e escorridos herdados dos avós índios. Acrescentando mais tempero a esta salada de raças cada uma delas caiu-se de amores pelo irmão de outra e foI correspondida.  Casaram-se no mesmo dia e as famílias, que faziam gosto, deram nó em pingo d’água para conciliar a fé de cada uma à cerimônia.

     Passaram a viver como uma comunidade em que os filhos, lindas crianças mestiças, tinham em cada um deles pais tão carinhosos quanto os próprios. Porque havia um aspecto os tornava iguais: haviam aprendido desde cedo a aceitar e valorizar a riqueza das diferenças. As quatro se rivalizavam em competência e talento. Mais que isto se tornaram especialistas na criação de penteados que levavam toques de suas raças. O sucesso foi tanto que foram ficando mais ousadas: passando a agregar aos penteados objetos de adorno de suas origens que chamavam atenção naquele interior tão pacato. Quem chegasse à cidade espantava-se ao ver desfilar senhoras ostentando sobre os cabelos primorosamente arrumados penas, pentes de marfim, pedras brilhantes e conchas.

      O salão que havia sido criado para complementar o salário dos maridos na fábrica de tecidos, única razão de ser da cidade, passou a ser a principal fonte de renda e fervilhava de clientes vindos de cidades vizinhas bem mais importantes. Tudo ia às mil maravilhas até que D. Arminda, senhora do Prefeito, caiu em depressão. Era ela a líder social da cidade e uma das mais entusiastas clientes do salão. Era triste de se ver aquela mulher tão vaidosa, tão ciosa de sua aparência, transformada num frangalho: desgrenhada, metida num roupão velho e imóvel numa cadeira do quarto, apenas chorava. O médico, o padre e a família tentaram de tudo e nada funcionou.


      Foi ai que as quatro amigas resolveram entrar em campo: apresentaram-se na casa da senhora carregando misteriosas sacolas e trancaram-se no quarto com ela sem dar qualquer explicação. Durante muito tempo a família, grudada na porta pela curiosidade e pela aflição, escutava apenas murmúrios. De repente uma risada gostosa e quase caem de espanto. Era sem dúvida o riso de Arminda! Agora riam todas, falando ao mesmo tempo! E a porta se entreabre deixando passar Rosa que ordena a todos que coloquem em semicírculo como para assistir a um espetáculo. Num gesto teatral apresenta D. Arminda que surge vestida com um quimono luxuriante (traje de casamento da avó de Misuko), trazendo ao pescoço um colar de pedras da mãe de Fátima tendo os cabelos num penteado afro adornado por um cocar de luxuriantes penas coloridas. Radiante ela declara: eu havia esquecido de sonhar.

      A notícia correu célere pela cidade. E, no início, timidamente e depois mais audaciosas, as clientes do salão começaram a exigir uma sessão de sonhos. Saiam do salão travestidas nos mais estranhos aspectos... mas lindas. Estavam ousando sair da rotina entregando-se à fantasia. Filhos, maridos, irmãos passaram a ver nelas outras pessoas: mais alegres, mais moças, mais felizes. Foi uma reação em cadeia. Até a fábrica, tão cinzenta e triste, coloriu-se com operárias ostentando penteados e roupas extraordinárias. No início houve certa reação dos encarregados até perceberem que todas trabalhavam mais e melhor.


      E eis que o Governador do Estado resolve visitar a cidade. Ao descer do carro seu olhar demonstrou o espanto ao ser recebido também por D. Arminda que, como todas as demais senhoras presentes, havia passado o dia anterior no salão e apresentava uma de suas criações mais requintadas. Foi discreto, no entanto, e saudou o Prefeito perguntando: acredito que o senhor tenha agendado uma visita à fábrica. Antes que este pudesse responder, D. Arminda adianta-se: a qual das duas o senhor se refere, Governador? O Governador espanta-se: Duas?! Só tenho notícia de uma. A de tecidos. E D.Arminda sob os aplausos da população que cercava a comitiva responde: Temos outra. Muito mais importante. A fábrica de sonhos! Lá aprendemos que somos todos iguais.

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