Maria do Socorro escondida no quarto chora em silêncio.
Choro manso de muitos anos. Em seu ateliê Maurício pinta mais um retrato. As
telas encomendadas por noivos, maridos e pais revelam belos rostos que a
atormentam. Nunca, nunca mesmo, o marido a quis retratar. E isto dói! Um dia,
ficou arrasada com a pergunta que lhe fizeram: ele não pintou um retrato seu? Antes que pudesse
responder Maurício adiantou-se como se a pergunta fosse a ele dirigida: pra
quê? Ele me acha feia, ela pensou, e
felizmente não esclareceu o “pra quê”. E então veio o medo de que um dia ele,
distraído, verbalizasse toda a verdade.
No casamento de muitos anos Maurício era de pouco falar.
Vivia lá pra dentro de si mesmo, pensando sabe-se lá o quê. Às vezes o pegava
olhando para ela com uma expressão estranha. Um dia tomou coragem e quis saber
a razão daquele olhar mudo. Vai ver significava a comparação de seu rosto com todos
aqueles outros. Tão lindos. E ela feia, tão feia. Mas apenas riu. Ele era
assim. Nunca dizia nada. A paixão com que ele a possuía nas noites, muitas
noites, era por ela entendida como o desejo provocado pela beleza daquelas
moças. É isto. Ele as deseja. E como não as pode ter as recria em meu
corpo.
Passou a odiar as telas. Era um alívio quando as via sair
porta afora levadas pelos noivos, maridos e pais. Menos uma, pensava. Mas não
adiantava porque surgiam outras e outras. Resolveu não entrar mais no
ateliê. Era insuportável a visão do que
era criado pela paixão, pelo desejo do marido. Sofria ao ver a volúpia com que
o pincel e a espátula – extensões de suas mãos – acariciavam a tela onde os
rostos pareciam mais vivos do que os
modelos. As moças – tão belas - não representavam
uma ameaça. Iriam desaparecer nos braços de seus pais, maridos e noivos. Mas as
imagens na tela, estas não. Pertenciam a Maurício, para sempre. Ficariam
gravadas em sua imaginação de criador.
Naquele dia o sofrimento se fez maior: todos os fantasmas
que a atormentavam seriam expostos e ela deveria acompanhá-lo ao coquetel de
abertura do evento. Tentou desculpar-se. Melhor seria não ir. Inventou um
motivo tolo que provocou em Maurício aquele olhar mudo e esquisito. Seria um suplício vê-las num conjunto
ameaçador e, o que seria pior, ser vista por Maurício e por todos, numa
comparação cruel. No espelho, o rosto coberto de lágrimas não ajudou. Feia! Sou
feia! Sabe-se lá porque de repente se viu possuída por um sentimento novo.
Raiva. Era raiva, sim, o que sentia. Pela primeira vez resolve partir para o
ataque.
Enxuga as lágrimas e sai à procura da beleza que tanto lhe
falta. Volta horas depois com um enorme embrulho. De novo em frente ao espelho
olha esperançosa a profusão de produtos de maquilagem que vão garantir o
milagre da beleza. Frenética começa a
obra. Mas nada parece dar certo. A ideal da beleza vai ficando cada vez mais
distante. A depressão e a tristeza tão suas conhecidas de novo se instalam e as
lágrimas voltam aos olhos borrando mais ainda a obra imperfeita que suas mãos
inábeis criam ao manejar as sombras, as bases, os lápis, os batons.
E é nesta desolação que escuta a voz de Maurício: vem.
Já estamos atrasados. Derrotada, ela pensa: desisto! Um dia teria que acontecer. Nem se preocupa
em lavar o rosto. Abre a porta e se revela a Maurício: sou feia, não sou?
Diz! Fala. Mais uma vez aquele olhar estranho e mudo. Para sua surpresa ele
a pega pela mão e delicadamente a faz sentar-se frente ao espelho. Com enorme
carinho começa a modelar seu rosto. Por suas mãos mágicas os cremes, as sombras
e os batons realizam o milagre da beleza. E ela é a tela. Maravilhada, vê
surgir no espelho a imagem de uma mulher bela. Maurício já terminou a obra, mas
estranhamente não parece surpreso com sua criação. Seu olhar é o olhar de
sempre. Aquele que ela não entende. Aquele do qual tem medo. E ela suplica: não
me olhe assim. Por uma noite você esqueça que sou feia. Você conseguiu. Todos
que lá estiverem me verão bela. E é
deslumbrada que escuta a revelação na voz do marido, que se faz doce, tão doce:
É! É isto eu que eu mais temia.
Eu sempre te soube linda. Mas te queria só pra mim! Se eu te transpusesse para
tela, as outras, todas as outras, se veriam feias.
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