segunda-feira, fevereiro 17, 2014

CABELOS VERMELHOS

A fama de Otávio Augusto como tinturista havia ultrapassado os limites do bairro e até mesmo da cidade. De longe vinham mulheres de todas as idades para entregar seus cabelos às mágicas misturas que resultavam em cores e tons jamais vistos. Horas eram marcadas com semanas de antecedência. Dava até briga!  Mas o sucesso parecia lhe ser indiferente. Otávio Augusto, nos seus mais de sessenta anos, era um homem triste. Muito triste.  Sua vida era um mistério. Não parecia ter passado e não lhe importava o futuro. De há muito os colegas e as clientes haviam desistido de entabular conversa. A única resposta que obtinham era um sorriso triste e gentil.      

Mas um comportamento diferente ocorria quando alguma cliente pedia que lhe pintasse os cabelos de vermelho. Nestas ocasiões podia-se perceber que a tristeza habitual revestia-se de uma grande emoção. Suas mãos eram possuídas de um quase imperceptível tremor e ele parecia afagar os cabelos que lhe eram entregues, retardando o momento em que os teria que deixar. E o resultado? Esplendoroso! Seus olhos tristes seguiam a cliente até que desaparecesse porta afora e neste momento a tristeza transformava-se em dor. Visível, sólida. Coisa esquisita comentavam todos.

Naquele sábado o salão estava em polvorosa. Casava-se Carmita, a neta do desembargador Padilha. O salão havia sido reservado para a noiva, sua família, madrinhas, damas de honra e algumas convidadas mais chegadas. Carmita havia passado os dias que antecederam a este sábado tentando convencer a avó, a doce D. Nininha, a arrumar os cabelos para cerimônia. Tarefa difícil esta porque D. Nininha jamais fora a um salão e empenhava-se em esconder a beleza, que ainda assim era visível, atando os cabelos brancos num coque severo. Este coque existira sempre.

Comentava-se na família a estranheza que havia causado o coque que apertara os cabelos de um vermelho intenso, quando da entrada na igreja da noiva de então. D. Nininha havia sido uma noiva triste. Sabe-se lá porque. O desembargador, então um jovem advogado, era um excelente partido, sobretudo para aquela moça de origem humilde.  A tristeza da noiva pareceu sumir com o nascimento dos filhos e netos a quem dedicou uma vida de carinho e atenção. Ela era por eles adorada.  Com o marido - a quem chamava Dr. Padilha – mantinha uma relação cordial que ele retribuía na mesma forma. Pouco conversavam. Mas isto não era muito notado.  Dr. Padilha era um homem de poucas palavras.

D. Nininha resistiu o mais que pode ao assédio de Carmita, a primeira neta e a preferida. Difícil negar-lhe um pedido. E foi assim que D. Nininha acabou capitulando. Na esperança de ser salva, no último momento, do que inexplicavelmente parecia ser um terrível sacrifício, chegou quando o salão já estava atendendo a última convidada. Otávio Augusto estava de saída arrumando o quarto onde preparava as tinturas. O cabeleireiro que havia sido instruído por Carmita para atender a avó, se adiantou para conduzi-la ao lavador. Neste momento Otávio Augusto sai do quarto. Seu olhar cai sobre D. Nininha e ele se imobiliza frente a ela como se houvesse visto um fantasma. D. Nininha, também imóvel, olha para ele. Sem dizer palavra Otávio Augusto delicadamente a pega pelo braço e a conduz a uma das cadeiras. O outro profissional se espanta ao ver que D. Nininha se deixava conduzir com um rosto radiante. Otávio Augusto retorna ao quarto das tinturas. O outro cabeleireiro se aproxima da cadeira, mas é imobilizado pela voz de D. Nininha que firme, declara: “Deixa! Ele vai me atender!”

Otávio Augusto retorna e com extremo carinho desfaz o coque de D. Nininha, acariciando os cabelos que se derramam sobre os ombros da senhora revelando uma linda e radiante mulher.  Duas horas depois, na igreja, a visão da avó ofusca a da noiva. D. Nininha para espanto e encanto de todos voltou a ter os cabelos vermelhos que lhe emolduravam o rosto aos dezoito anos. Na recepção D. Nininha irradiando felicidade era a rainha da festa ao contrário do desembargador que apresentava uma expressão estranhíssima. Parece estar em pânico, comentaram alguns.

A festa entra madrugada adentro e no dia seguinte os primeiros a acordar encontram o desembargador sentado em sua cadeira de balanço, olhar desamparado, com um bilhete nas mãos. Na letra trêmula de D. Nininha o lacônico texto: “cumpri meu papel e na cor de meus cabelos recuperei o amor de minha vida. Adeus”. E nunca mais se ouviu falar neles.         


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