quinta-feira, fevereiro 20, 2014

NÃO CARECIA

A notícia deixou tristes, muito tristes, todos os moradores da Rua das Acácias. Nem mesmo a turma da tão esperada pelada de domingo, se animou a jogar. Pequenos grupos reuniam-se frente às casas modestas murmurando: não é possível Coisa estranha porque era mais que possível: Vovó Cacilda tinha quase cem anos. Ela mesma não sabia exatamente quantos. O que importava é que Seu Euzébio - o marido - tinha mais dois que ela. Agora desorientado ele não deixava o lado da cama: Vovó Cacilda ia morrer.

O médico falara claro: uns poucos dias, se tanto. Dê a ela todo conforto. É só o que se pode fazer. Euzébio não entendeu: conforto?  Falando assim como se fosse uma coisa nova pra dar. Maluquice. Há mais de setenta anos juntos as palavras conforto, amor, amizade nunca haviam sido ditas. Dizer pra que? Foram vividas. No dia-a-dia. No toda hora. Precisava falar não. E ele sorriu por dentro lembrando-se da única altercação que tiveram.

Já lá iam tantos anos... Foram os cabelos da Anita. Lindos. Compridos até a cintura. Brilhantes. Chegavam a ser azulados de tão negros. Distraído ele havia elogiado. Vai daí que Cacilda chorou três dias e três noites. Uma febre tifoide em criança havia rareado seus cabelos. Na verdade a cabeça parecia a de uma boneca velha. A paixão de Euzébio, revelada aos 15 anos, havia eliminado o desgosto de tê-los assim. Mas logo depois do casamento apareceu Anita, a vizinha, com aqueles cabelos de motivaram o comentário de Euzébio. Ele deu nó em pingo d’água para desfazer o mal causado pela distraída admiração. E, para falar a verdade, nunca conseguiu inteiramente. Durante todos aqueles anos, vez por outra ela declarava: se não fosse pelos cabelos da Anita eu teria sido a mulher mais feliz do mundo. Ah! Se eu pudesse ter os cabelos assim! Em vão Euzébio renovava as juras de amor, em vão se desesperava acariciando os ralos cabelos da amada: os de Anita eram um fantasma recorrente.

No mais, escandalosamente felizes, vieram os filhos, netos, bisnetos e um tataraneto. Todos muitíssimo queridos, educados e cuidados. Mas nenhum deles conseguiu prioridade no coração dos pais. Hoje os dois moravam sozinhos, olhando um pelo outro, olhando um para o outro. Como haviam começado. Gostavam das visitas freqüentes de todos, mas se bastavam. Na verdade até achavam um tanto aborrecido o afastamento momentâneo a que eram submetidos pelos telefonemas diários da tropa familiar. Tratavam de encurtar a conversa sempre com uma frase que se iniciava por: ele (ou ela) está me chamando para...  Isto era até motivo de riso na família que fazia apostas sobre o intervalo de tempo que decorreria entre o atendimento à chamada e a formulação da bendita frase.

Por esta razão causou o maior espanto o telefonema de Euzébio à bisneta mais velha convocando para viesse imediatamente. Reuniram-se todos para esperar seu retorno, curiosos sobre o motivo da convocação. E ela voltou muda: não posso falar. É segredo! Ele só pediu que ninguém ligasse para lá hoje à tarde. Tenho que providenciar uma coisa! E partiu em direção à rua.  O sumiço durou o dia inteiro. A noitinha voltou dizendo: ele vai ligar. E de fato ele o fez num tom de voz muito estranho. Parecia feliz. Mais estranha ainda foi a afirmação: minha Cacilda está ótima... e linda. Euzébio ao falar com qualquer membro da família jamais se referia à Cacilda como sua mãe, sua avó ou sua bisavó. O possessivo na primeira pessoa sempre vinha antes. E acontecia assim com ela também.

Na madrugada o filho mais velho gelou ao som da campainha do telefone. Boa coisa não podia ser. E não era mesmo. Cacilda havia partido. Foi só o tempo de avisar a todos antes de correr para a casa dos pais. Apressaram-se tanto que chegaram todos juntos num cortejo de carros que acordou os moradores da rua. E estes imediatamente dirigiram-se à casa dos velhos.

Em frente à porta do quarto Euzébio montava guarda como que esperando alguma coisa. Uma pequena multidão formou-se na sala transbordando pelo jardim. Euzébio rompe o silêncio: estão todos aí? Os amigos também? Um murmúrio de afirmação se escuta. E ele diz: não carecia. Não carecia mesmo. Eu nunca me importei, mas ela sim. Ficou tão feliz. Partiu sorrindo e nem foi pra mim o sorriso. Numa fila indiana todos vão entrando e se deparam com Cacilda, morta. Emoldurando o rosto enrugado, lindos e brilhantes cabelos negros lhe chegam à cintura: iguais aos de Anita. Nas mãos cruzadas sobre o peito um espelho redondo. Último a vê-la com vida.


   

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