A hora do jantar se aproxima e Camilinha está muito
infeliz. Vai recomeçar tudo: a irritação do pai, a discordância da mãe, as
gracinhas do irmão, a avó alheia a tudo, completamente fora do ar. Ah! Se eu pudesse sumia daqui. Pra sempre. Com este pensamento
lágrimas lhe vêem aos olhos: será que alguém vai perceber quando eu for embora?
No dia da festa alguém vai se dar conta de que eu não estou lá? Claro que não!
Ninguém vai perceber... ninguém se importa comigo... E vem a terrível certeza:
estou só no mundo!
Esta constatação leva a infelicidade de Camilinha a um
espantoso patamar e às lágrimas se juntam soluços incontroláveis fazendo com
que ela desabe sobre a cama em desespero encharcando o travesseiro. Só percebe
a presença da mãe quando escuta a voz severa: de novo! Isto está se tornando ridículo! Lave este rosto e venha jantar! A porta se fecha atrás da mãe e ela passa do
sofrimento à raiva. Muita raiva.
Levanta-se de um salto e dirige-se para a sala com um andar
duro, batendo os pés no chão com força. Os outros já na mesa conversando
animados nem olham para ela: eles vão ver só! Muda! É isto! Vou ficar muda como
Vovó. Pra sempre! Nunca mais minha voz será escutada nesta casa. Imediatamente
após ter tomado esta importante decisão declara solene, em tom de desafio: resolvi
que quero ir para um colégio interno. A irritação de sempre transparece na
voz do pai: e a senhora poderia me dizer quem é que vai pagar este bendito
colégio? E a mãe emenda: mas se não temos dinheiro nem para comprar este
infeliz vestido de época que você inventou?
A infelicidade volta: viu só?! Pouco se importam com a
idéia de eu desaparecer daqui. Se tivessem dinheiro me mandavam hoje para este
horrível colégio interno. Viu só como ele disse que era bendito? Eles me
odeiam. Querem se livrar de mim. Nunca,
nunca vão entender a seriedade do problema. Também, como é que poderiam? São
velhos, cansados, tristes. Como é que podem perceber o que é uma festa anos 30?
Como é que podem sentir a emoção de encontrar lá o Nando? O Nando que disse pra
toda a turma, mas olhando bem nos olhos dela, “eu vou dançar a noite toda com a
menina que estiver mais bonita!”. Logo o Nando por quem ela suspira há mais de
seis meses! Seis meses! Uma vida! Foi a primeira vez que ele pareceu se dar
conta de que ela existia. Bem nos olhos! A cada dia de aula o sofrimento
aumenta com os comentários das meninas que descrevem as roupas que estão sendo
preparadas para a festa anos 30. Imagina se ouvissem a decisão da mãe: a
gente improvisa! Ela iria morrer de vergonha se ouvissem isto. Melhor é
sumir mesmo.
Mas a raiva volta e ela, em desespero, apela para o que
ainda não confessou: O Nando! Ele só vai olhar para mim se eu estiver linda.
Com um vestido com lantejoulas! O pai comenta: Nando era o nome daquele grande amigo de meu pai. Um chato. Não saia lá
de casa! Quando... Para assombro
de todos é interrompido pela voz firme da Avó que há anos não fala: “ah...
as lantejoulas...” E, antes que alguém possa esboçar um gesto ela se
levanta e parte em direção a seu quarto. Camilinha até esquece o drama em que
está mergulhada e, junto com os outros. segue em silêncio atrás da avó que, no
quarto, retira freneticamente uma quantidade espantosa de objetos, embrulhos e
caixas do fundo do armário. O Pai ainda arrisca: Mamãe... a senhora .. mas emudece pelo
comando firme da velha: Calado! Em
estupor a família se entreolha. O grito da avó os assusta: Achei!
Radiante, ela exibe um embrulho de papel pardo. Senta-se na
cama e delicadamente desata os nós do barbante que o envolve e exibe um
maravilhoso vestido coberto de lantejoulas prateadas. Camilinha, deslumbrada,
se aproxima da avó e num murmúrio pergunta: era seu, vó? Até hoje não se
sabe se o que foi dito numa voz espantosamente jovem, era uma resposta: eu
havia chorado tanto... antes... ninguém entendia... e eu sofri muito... ai, um dia
ele disse que achava lindo lantejoulas e depois... depois... O grito sai de todos em uníssono: quem? Severa a avó responde: o Nando...
Delicadamente estende o vestido para Camilinha, como que
numa oferenda. Ela o coloca frente ao corpo e lágrimas correndo se observa no
espelho da porta do armário. De costas nem percebe que o resto da família
consternada tenta, inutilmente, provocar alguma reação na avó que inexplicavelmente
retornou a seu mundo secreto. E nunca mais falou!
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