quinta-feira, março 06, 2014

POR UM SERVIÇO LIMPO

Rio de Janeiro - Carnaval de 1952
José Simões, aos 30 anos, dá o laço na gravata borboleta, dentro de um impecável "summer". Com desgosto, alisa um imperceptível amassado no paletó e grita por Antonia. Risonha, ela escuta recriminações: o descuido em passar a roupa significa uma falha na imagem. Antonia promete: não vai mais acontecer. O tom rigoroso e autoritário dá lugar a uma queixa infantil, lamurienta: ela sempre diz isto. Antonia sorri maternal, contrariando seus 25 anos.

No bonde, um grupo de palhaços coloridos, canta e dança sobre os bancos. O Teatro Municipal surge iluminado. José salta e se dirige para lá, apressado. O porteiro fardado é a única pessoa na entrada, que José ultrapassa dirigindo-se à porta lateral, onde uma fila de homens, vestidos como ele, entra vagarosamente. José é garçom.

José conduz uma garrafa de champanhe e taças, com elegância, desviando-se de bêbados e mascarados. Na porta de um camarote, dois homens de terno, o deixam entrar depois de uma avaliação minuciosa. O sorriso nos lábios de José é quase imperceptível ao oferecer a taça ao homem sorridente que o observa. O "senhor presidente" tem um leve tom de intimidade e é retribuído com exclamações de reconhecimento. José é um garçom familiar ao Presidente Getúlio Vargas.

Nos braços de Antonia, José comenta sua atuação no baile. Nomes famosos desfilam entremeados com a descrição do cardápio servido na ceia. Antonia, sedutora, quer saber se ele flertou com alguma mascarada. José sinceramente se escandaliza. Seria inadmissível, não profissional. Antonia enrosca seu corpo no dele, num convite ao amor. José se rende e a possui com uma fúria que não se poderia supor num homem comedido como ele.

Rio de Janeiro - 1968
No Bec Fin o movimento é intenso. Em todas as mesas discute-se a situação do país. José apresenta as trutas com amêndoas ao senhor de cabelos grisalhos que preside a mesa e inicia sua abertura. Todos interrompem a conversa para acompanhar a operação: ninguém faz isto como José. O elogio não o perturba. Impassível e solene ele vai colocando os pratos servidos para cada um dos convivas. Curioso, o senhor quer saber a opinião de José sobre o golpe militar. Categórico, ele deixa transparecer o desgosto: militares não sabem se ter à mesa. Uma gargalhada de concordância saúda a declaração.

A mesa de almoço está sendo primorosamente posta por Antonia. Serviço terminado ela se dirige para o quarto. Na penumbra José dorme. Antonia o observa com carinho. Delicada ela o acorda: já são 5 horas da tarde. José senta-se na cama. Os dois trocam comentários sobre a noite anterior. José enumera nomes de fregueses a quem serviu. Orgulhoso, pede à Antonia que apanhe a carteira no bolso da calça. Exibe um maço de notas: Dr. Almeida Furtado retribuiu assim seu comentário sobre o governo da revolução. Um garçom sabe das coisas. Se souber aproveitar adquire mais cultura do que na faculdade. Antonia comenta que se as gorjetas continuarem assim dentro em breve poderão comprar a casa. A vizinha disse que agora tem um banco que ajuda. José, complacente, traduz. É o BNH. É uma mulher que chefia. Já foi uma vez no Gourmet. Ordenou um Chateau Margaux para acompanhar um badejo. Um horror. Antonia está impressionada.

José e Antonia comemoram a compra da casa. Ele se destaca dos convivas que, ruidosamente, tomam cerveja em mangas de camisa: de terno, é tratado com deferência. O sogro escuta admirado o relato que José lhe faz de notícias que não saem em jornal. Torturas, prisões, pessoas desaparecidas. José não conhece essas pessoas. São estudantes, comunistas, pessoas que nunca freqüentaram os lugares em que trabalha. Mesmo assim ele está chocado. Isto não parece certo, embora o governo esteja sendo apoiado por muitos de seus fregueses mais eminentes. José está confuso. O sogro acha que ele não deve se preocupar com isto. Afinal foi o governo que permitiu a compra da casa. Todo mundo está prosperando. José concorda que há muito dinheiro rodando na noite. Até dólar ele tem recebido. O sogro olha, maravilhado, a nota de 10 dolares que passa de mão em mão, admirada com respeito.

Rio de Janeiro - 1986
A imponência que caracterizava José já não é mais a mesma. O maitre do Gourmet, pouco a vontade, se dirige a ele: o movimento já não é o mesmo. Os fregueses antigos se foram. Os novos preferem o serviço feito com rapidez e não dão valor ao requinte com que José se habituou a servir. Ele merece uma casa que valorize o tradicional. José, atingido, procura manter a dignidade: serviço não há de faltar.

A romaria começa, à procura de emprego. José se choca com as poucas propostas: sem salário, só à base de gorjeta. Percebe que sua experiência e capacidade de nada valem. Pequenos detalhes revelam seu desânimo: a maneira de andar, de se vestir, o tom de voz. O orgulho, no entanto, ainda transparece no que fala, ao se candidatar a uma vaga.

Antonia apresenta os mesmos sinais de envelhecimento que marcam José. Mais gorda, olheiras fundas, conserva, no entanto o sorriso e o bom humor que complementam o carinho com que trata José, chegando em casa, cansado. Ela se apressa nos últimos cuidados com a casa antes de sair. Está atrasada. Até Ipanema é um estirão e D. Mercedes cria o maior caso quando ela chega depois da sete para a faxina. É preciso ter paciência.

Rio de Janeiro - 1990
No escritório de segunda classe José é recebido por Airton, gerente da firma de recrutamento de garçons. A experiência que ele tem garantirá uma constante convocação. É só preencher uma ficha. Ele será chamado. José está radiante. Perde-se no relato do tempo em que Getúlio Vargas o chamava pelo nome. Airton disfarça o pouco interesse: vai adorar ouvir isto em outra oportunidade. Há muitos candidatos à espera. Os que esperam têm um ar cansado, desanimado.

Airton, rindo, descreve para o dono da empresa, a figura de José. Inacreditável. Cheira a naftalina. Parece, no entanto, entender do negócio. Servirá para dar um ar de competência que os suburbanos que os contratam valorizam. Julio se preocupa: muito idoso?  Cabelos brancos? A afirmativa de Airton determina: mande pintar. 

Em casa, a recepção que lhe foi dada por Airton é colorida pela fantasia de José que prevê o fim das dificuldades. A firma é conceituada. Recepções e casamentos. Certamente encontrará, nestes lugares, os antigos fregueses. Antonia se preocupa com o entusiasmo. Procura trazê-lo à realidade, com cuidado. Contanto que haja serviço já será muito bom.

José, em companhia de outros garçons, escuta a preleção de Airton. Não há gorjetas. É um casamento. Na eventualidade de ser quebrada alguma peça de louça, o valor será descontado. Vai ser um ótimo serviço. Festas de casamento terminam cedo. São poucas horas de trabalho e as bandejas já estarão servidas na cozinha. Os copos também. José se assusta com esta informação: não é de bom tom trazer os copos já servidos. Airton seco atalha: a quantidade de bebida já é predeterminada. A circulação dos garçons deve ser rápida e constante, impedindo que se sirvam de mais de um salgadinho por vez, ao mesmo tempo dando impressão de fartura. José está chocado. Os outros garçons observam o diálogo com ironia. Um deles informa a José que é sempre um casamento brega. A empresa nunca pega serviço de granfa. Tudo subúrbio. José, com frieza, declara que não se justifica a ausência de etiqueta. Ainda procura convencer Airton que irritado explode: tem que pintar os cabelos. José se cala.

No banheiro, Antonia acabou de pintar de preto os cabelos de José. O resultado é grotesco. O preto avermelhado faz com que as linhas da velhice se destaquem marcando o rosto. Antonia procura animá-lo. Parece ter menos 20 anos. Ela é que está velha. Vai ter que se cuidar. Assim José acaba conquistando alguma menina. È enorme a tristeza de José.

No escritório os garçons reclamam. O atraso no pagamento do último serviço já vai para mais de três dias. Airton explica: o cliente ainda não pagou. Com esta inflação a empresa não pode financiar. Assim vão acabar tendo que fechar as portas. Será pior para todos. O argumento assusta e eles desistem. José se deixa ficar. Quer falar com diretor. Airton tenta dissuadi-lo. Não vai adiantar. Julio está muito ocupado. José insiste. Espera o tempo que for necessário. Airton dá com os ombros e vai para a outra sala. A secretária olha para José, penalizada. Seu Julio não vai ceder. Imagina se ele vai tirar o dinheiro aplicado para pagar alguém. Só quando entrar o outro serviço. José se escandaliza com a noticia. Isto é desonesto. A secretária ri debochada. Também é desonesto ficar com as gorjetas e ainda pagar só um terço do que cobra por cada garçom. José, indignado, sai correndo.

No bar da esquina alguns dos garçons tomam cerveja. Ele os informa do que acabou de saber. Os outros riem. José parece viver num outro mundo. Todas as empresas funcionam assim. Não adianta fazer nada. José tenta argumentar. Há que ter dignidade. Os colegas se irritam: dignidade, o cacete! O que interessa é a vaga.

José entra apressado no sindicato. Quer falar com o advogado.

O advogado explica: José não tem vínculo empregatício. É autônomo. Não há contrato assinado obrigando a pagar no dia da prestação de serviço. Comenta com o assistente: essa gente se abaixa, aceita as condições mais absurdas e depois quer lutar pelos direitos. Um mínimo conhecimento da legislação é necessário. José, chocado, se retira, sem atender o chamado do advogado.

José em desespero, anda sem rumo. Esbarra nas pessoas, como bêbado. Um rapaz comenta com a namorada que a bicha de cabelos pintados está num barato. José escuta. Uma mudança se opera. Ele se empertiga. Entra em uma loja de ferragens. Sai com um embrulho. Anda rápido, desenvolto. Parece mais moço.

Julio está chegando no estacionamento. Vai abrir o carro e vê José que se aproxima. Esboça um gesto de contrariedade: que saco! Não tem tempo agora. Volte amanhã. José, com um inesperado e doce sorriso, enfia a faca em seu peito. O sangue jorra, sujando a mão que ainda segura a faca. O corpo cai libertando-se dela. José se afasta, caminhando devagar, empertigado. Os raros passantes olham a cena apavorados, imóveis.


Na delegacia, José deposita a faca na mesa do espantado comissário. Dignidade e orgulho dão o tom à sua declaração: "É preciso lutar por um serviço limpo, Doutor."

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