Arrumar gavetas e armários é uma daquelas tarefas que consigo
adiar, sem menor culpa, por intervalos de tempo desmedidos. Por anos, às vezes.
Mas sempre que me disponho a fazê-lo acabo curtindo uma deliciosa viagem. Esta
semana, corajosamente desabei todas as gavetas de fotografias! Não diria que as
tenho aos milhares, mas certamente centenas. Locais e pessoas brotaram causando
espanto, emoção, riso e saudade. Algumas trazendo de volta pessoas que já se
foram ou se perderam nestes descaminhos que a vida teima em criar.
Mas as que mais me atraem são sempre as que refletem a mim
mesma em idades crescentes começando em berços e fraldas. Destas é claro a
memória nada me diz. São memórias de outros e nelas não consigo me reconhecer.
Poderiam ser qualquer criança, na verdade.
Mas, a partir de certa idade, creio que por volta de três anos, consigo
recuperar luzes, cores, ruídos e perfumes. Algumas me assustam por tão
diferentes das imagens que a memória conservou. Coringa, meu primeiro cavalo
não era enorme! Fraulein não era feia! Tio Carlos não era bonito! Meus cabelos
não pareciam com os de uma estrela de Hollywood. Na verdade eram apenas
despenteados (sempre).
E eis que hoje me caiu nas mãos uma foto histórica. Olho no
verso e lá estão nomes e a data. Dia em que as forças de Fidel Castro entraram
em Camaguey. Não creiam que conheço tanto assim a História desta nossa América
a ponto de lembrar-me de maneira tão precisa o dia, o mês e o ano. Lembro-me
porque entrei em Camaguey no mesmo dia que em que Fidel o fez! Num por acaso.
Estava, em companhia de meu marido e outros oficiais, a caminho dos Estados
Unidos, onde eles iam buscar aviões que haviam sido adquiridos pelo governo
brasileiro. Não tenho muita certeza, mas acho que eram os Netuno, aviões
destinados à caça submarina. Ia comigo uma grande amiga – Elsie - também casada
com um oficial e que havia sido minha colega de ginásio no Bennett. Ambas
partíamos para a aventura de conhecer Nova York enquanto os maridos se
mandariam para a California em busca dos tais aviões. Voltaríamos pela aviação
comercial, mas a ida se fazia num DC-3 da FAB, com bancos de metal e de lado. Um horror.
Mas nós estávamos tão entusiasmadas que nem este tormento que
duraria dias, nos trazia qualquer desconforto. E foi assim que subindo e
descendo sem parar (a autonomia do DC-3 não era lá estas coisas), numa das
ultimas etapas pernoitamos na Guiana Inglesa. Dali seguiríamos para Miami onde
tomaríamos um ônibus para Washington e finalmente Nova York! Eis que pouco
depois da decolagem o comandante anuncia uma pane no motor esquerdo, anúncio
este seguido de outro bastante desagradável: o direito não estava lá estas
coisas. No avião só havia pilotos, sargentos mecânicos e nós duas. E se eles
pareciam calmos, achamos de bom alvitre também ficar. O lugar mais próximo para
um pouso de emergência era a pista de Camaguey, em Cuba. E Cuba estava em plena
revolução.
A notícia estourou como uma bomba. Naquela época (quase)
todos torciam por Fidel entusiasticamente, mas a ideia de sermos confundidos
com possíveis inimigos não era agradável. Pelo rádio se soube que naquele mesmo
dia Fidel havia entrado em Camaguey. Ficamos excitadíssimos. Iríamos ver Fidel.
Devidamente identificada como aeronave brasileira nos foi dada permissão de
pouso.
Ao tocar o chão, através das pequenas janelas, emocionados
vimos os guerrilheiros com suas armas e suas barbas. No lanche mais que frugal
que nos ofereceram veio a grande decepção. Não poderíamos ir à cidade por
questões de segurança. Ver Fidel, nem pensar. Confinados ao campo de aviação o
jeito foi confraternizar com os guerrilheiros que o ocupavam. Contaram-nos da
entrada triunfal de Fidel na cidade, população nas ruas, enlouquecedores
aplausos. O advento da câmara digital estava longe de ocorrer e eu sem máquina
fotográfica! Elsie também não a tinha.
Estas eram um dos itens que pretendíamos adquirir nos Estados Unidos.
Imploramos ao Comandante (único que possuía tal aparelho e pessoa de quem faço
questão de esquecer o nome) a nos fotografar na companhia de nossos gentis e recém
conhecidos guerrilheiros. Tivemos certa dificuldade em convencê-lo porque ele
era um dos poucos que não aprovava Fidel que considerava comunista e como tal
certamente comia criancinhas vivas. Mas finalmente vencemos a parada.
Em 1969, dez anos depois, quando interrogada pelo Sops
(dependência do DOPS num porão da praça XV), me foi mostrada esta foto como
prova das muitas acusações que me faziam: eu, além de fomentar a revolução camponesa no interior de Goiás havia sido atuante na revolução
cubana! O comandante sem nome e sem muitas outras qualificações também, era o
dono dos negativos e, provavelmente, deve ter se felicitado em ter cedido a
nossa insistência em tirar a foto. Isto lhe proporcionou dar um testemunho de
sua fidelidade ao regime militar anos depois. Afinal a foto comprovava que desde criancinha havia se
preocupado em documentar a adesão daquelas duas perigosas subversivas, às
forças de Fidel na companhia dos terríveis e sanguinários guerrilheiros Gutierez, Quintana, Chaco e Corrucho,
![]() |
Nenhum comentário:
Postar um comentário